Senhor meu, Sancho Pança enlouquecido,
Servo vencido
Na terra sonhada,
Tem a coragem da verdade nua:
Olha esta Ibéria que te foi roubada,
E que só terá paz quando for tua.
Ergue a fronte dobrada
E começa a façanha prometida!
Cumpre o voto da nova arremetida,
Feito aos pés de quem foi
O destemido herói
Da batalha de ser fiel à vida!
Nega-se a ser passiva testemunha
Do amor cobiçoso
Que os falsos namorados
Fazem crer impoluto e arrebatado
Àquela que reflecte o céu lavado
Nos olhos confiados.
Venha o teu grito de transfigurado:
Ai, no se muere!... E a Donzela acorda
E renega o idílio traiçoeiro.
Venha o Sancho da lança e do arado,
E a Dulcineia terá, vivo a seu lado,
O senhor D. Quixote verdadeiro!
PESADELO DE D. QUIXOTE
Sancho: ouço uma voz etérea
Que nos chama...
Ibéria, dizes tu?!... Disseste Ibéria?!
Acorda, Sancho, é ela a nossa dama!
Pois de quem hão-de ser estes gemidos?!
Pois de quem hão-de ser?!
Só dela, Sancho, que nos meus ouvidos
Anda o seu coração a padecer...
Ergue-te Sancho! Quais moinhos?! Quais?!
Ai! Pobre Sancho, que não sabes ver
Em moinhos iguais
Qual deles é só moinho de moer!...
[Miguel Torga, in Poemas Ibéricos (1965)]
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